Apelidos

 

Na acepção vulgar o apelido é qualquer nome usado em comum por toda a família. O patronímico é o nome próprio do pai transmitido aos seus filhos (unicamento os seus descendentes direitos). Por extensão, o matronímico é o nome próprio da mãe transmitido aos seus filhos.

 

Saber como se formam e transmitem os apelidos é um desígnio constante do genealogista. Depois de estudar a história da família até às origens tão recuadas quanto os documentos permitem descobrir, resta ao investigador aproveitar os indícios obtidos, tentando encontrar ligações com um passado mais remoto. O apelido é, para isso, uma pista de primeira categoria.

 

O seguinte artigo é um resumo meu do artigo1 que saiu na revista Raízes Memórias e que apresenta muito bem a evolução dos princípios de nominação das pessoas em Portugal.

 

 

 

I. Período do Nome Simples

 

Quando se estuda a história dos apelidos em Portugal, deve-se começar pelas invasões bárbaras, pois o sistema Romano do nome tríplo, que vigorava anteriormente, extinguiu-se por completo nos séculos V e VI.

 

Os povos germânicos usavam um só nome, o que não admira porque, tendo eles uma enorme variedade onomástica - com nomes compostos geralmente de duas palavras - bastava-lhes o nome próprio para se diferenciarem. O mesmo não acontecia com os romanos (...) Segundo Varrão o patriciado romano não usava, no total, mais de 30 nomes próprios - e cada família limitava-se a 7 ou 8 que eram repetidos em todas as gerações. Apesar da população de origem germânica ser uma minoria - menos de 1/5 do total - no estado visigótico peninsular, todos os mediavalistas têm reparado (...) que até ao século XII os nomes de pessoas visigodos dominam, de maneira absoluta, no antigo onomástico português.

 

Toda a população tinha adoptado nomes germânicos (...) Compreende-se, pois, o rápido desaparecimento do sistema onomástico romano, e o uso generalizado de nomes bárbaros constituídos apenas por nome próprio.

 

Durante o período em que vigorou o uso germânico do nome único, foi prática corrente servir o nome próprio como património de família, (...). Em várias inscrições ibéricas do princípio da idade média transparece o costume de transmitir aos filhos parte do nome paterno o que coincide com a observação de mediavalistas franceses, segundo os quais as grandes famílias do território de França, no período a 1100 só punham aos filhos nomes já usados pelos seus antepassados próximos.

 

 

II. Nascimento do Sobrenome

 

Não é possível estabelecer a data precisa em que se começa a usar o sobrenome, ou seja, a pôr à frente do nome pessoal o nome do pai, com a forma genitiva ou uma palavra indicativa de filiação, como filius ou proles. Já em inscrições lusitano-romanas se nota esse costume, mas não há indícios de que o nome paterno estivesse permanentemente associado ao próprio nome.

 

Até ao século XII, a regra do patronímico foi seguida rigorosamente : o segundo elemento dos filhos era tirado do nome próprio dos pais. A regularidade desta prática foi suficiente para os historiadores conseguirem reconstituir o nome de um homem sabendo como se chamava o pai e um dos filhos dele.

Exemplo : Onega Lucides era neta pelo lado paterno de Alvito Lucides, pôde deduzir-se o nome do pai dela : Lucídio Alvites, porque a filha usava o sobrenome Lucides e Alvites porque é o patronímico de Alvito.

 

 

III. Influência Árabe

 

Entretanto, nas regiões submetidas ao domínio sarraceno os nomes árabes misturam-se com os cristãos, como era de calcular. (...) Os nomes de pessoas árabes abundam agora extraordinariamente entre os cristãos e até se compoem patronímicos cristãos com o árabe iben filho, plural bani.

Exemplo : um doador a Sahagún em 962, que se chama Fortunius iben Garseani em vez de Fortunius Garseani

 

A esta época deve remontar o famoso apelido Benavides... os filhos de vidas. Em Portugal Beneegas, Benegas 991, Venegas 1258, filho de Egas. Esta forma patronímica, Viegas, transmitiu-se às várias famílias portucalenses em que havia um pai chamado Egas.

 

Mesmo entre a antiga nobreza Goda, houve quem adoptasse nomes árabes, como Omar ben Hafsún que em 879 comandou uma rebelião cristã e pertencia a uma nobre família visigótica.

 

 

IV. Nascimento dos Apelidos

 

O apelido própriamente dito é o terceiro elemento do nome. A maior parte dos apelidos têm origem 1. em alcunhas, 2. em nomes de terras de onde as pessoas são naturais ou terras que possuem, e 3. em nomes de profissões. Muito menos numerosos são os apelidos derivados de outras fontes como a religião, concessões régias, etc.

 

A origem das alcunhas é muito remota. Nos documentos mais antigos que possuímos faz-se alusão a pessoas que tinham um nome e eram conhecidas por outro. Algumas destas alcunhas terão passado a ser usadas em forma de sobrenomes.

Exemplo : os filhos de Afonso, cognonimado Bittofi, que viveram na primeira metade do século X e usaram o patronímico Bettotiz

 

É certo que o apelido originado em alcunha já existia em Portugal por meados do século XII (...). Foi, provávelmente, no princípio do mesmo século que começaram a aparecer apelidos correspondentes a profissões : Escudeiro, Ferreira...

 

A origem dos apelidos toponímicos - nascidos do nome de terras - encontra-se um tanto obscurecida, porque os nobiliários atribuem a tempos muito recuados o uso dos apelidos, contrastando com os documentos existentes. (...) É o que acontece com o relato da tomada de Lisboa, conhecido por Carta de Osberno. Na versão latina original não se menciona nenhum Cavaleiro Português com mais de dois nomes, mas os estudiosos que fizeram descrições da tomada de Lisboa baseadas em Osberno trataram de identificar Gocelino de Sousa com Gonçalo Mendes de Sousa, Mendo copeiro de Afonso com Mendo Afonso de Refoios, e Pedro Pelágio com Pedro Pais da Maia.

 

Mais atenção deu Almeida Fernandes a uma tal discrepância entre o nome indicado pelos nobiliários e o nome patente nos documentos. ao descrever famílias existentes no território portucalense à data da fundação da nacionalidade, pôs entre aspas os apelidos que figuram apenas nos livros de linhagens. (...) falando da linhagem dos Sousões chamou a atenção para o uso tardio do apelido Sousa, nestas palavras : a primeira vez documentada que se encontra o apelido de Sousa é de 1134, em Soeiro Mendes.

 

Parece pois poder-se concluir que as linhagens medievais só começaram a juntar ao nome o da terra que possuíam a partir da fundação da nacionalidade, aproximadamente, sendo provável que entre os Sousões se tenha usado pela primeira vez com aspecto toponímico, mas sem ligação com linhagens que se possam identificar.

 

Note-se também que o uso destes apelidos não se tinha ainda espalhado entre a nobreza portuguesa quando em outros países europeus já era corrente. Temos uma amostra disso na citada carta de Osberno sobre a conquista de Lisboa, onde ao lado dos nomes dos comandantes cruzados - Herveu de Glanville (inglês), Arnulfo de Areshot (alemão), Cristiano de Gistel (flamengo), Sahério de Arcelles, Simão de Dover (inglês), André (inglês) - quase todos com apelidos toponímicos, aparece apenas um português, Gocelino de Sousa, com apelido do mesmo género.

 

 

V. O Nome Característico da Idade Média

 

Dá-se pois, desde o século XII o alastramento do tipo nome que se considera característicamente medieval, composto de nome próprio, patronímico e apelido. Apesar de ser considerado característico da idade média, este tipo de nome nunca chegou a ser usado pela maioria da população portuguesa. E as pessoas que usam apelidos constituem uma pequena parte da população, ultrapassada de longe pela que se limita a nome próprio e patronímico.

 

É natural que os genealogistas, habituados a manusear os registos paroquiais dos séculos XVI e XVII, cheguem intuitivamente a conclusões semelhantes, visto que a maioria dos nomes que aí se encontram são formados por dois elementos, sendo o segundo um patronímico ou um apelido, mas predominando os patronímicos.

 

A estrutura do nome medieval começa a desagregar-se no século XV (...). Pode dizer-se que a decadência do patronímico principia depois dos meados do século XV, e que o sistema já estava desorganizado no século XVI.

 

De facto, os patronímicos começam a ser usados como apelidos, e a ser transmitidos em gerações sucessivas, em vez de serem adaptados em cada geração do nome próprio do pai.

 

No século XVI existem, na mesma região, pessoas usando patronímicos como apelidos e outras usando-o comoindicativo do nome paterno. Exemplo : num manuscrito de 1558 vemos os aforadores João Gonçalves filho de João Gonçalves, Afonso Vaz filho de Afonso Vaz, Pero Afonso filho de Favião Afonso, João Afonso filho de João Afonso, João Lourenço filho de João Lourenço ; nestes casos os patronímicos transmitiram-se de pais para filhos. Por outro lado encontramos Gomes Pires filho de Pedro Afonso, Afonso Simões filho de Afonso Luís, João Simões filho de Simão Afonso, Domingos Rodrigues filho de Rodrigo Gonçalves ; nestes casos o patronímico conservou a sua função original.

 

 

VI. Período de Anarquia

 

Desde o final do século XVI começou uma época de grande indisciplina no uso e transmissão dos apelidos, pois as pessoas usam frequentemente apelidos diferentes dos que usavam os seus pais e irmãos, indo buscá-los indiferentemente a pai, mãe, avós, tios, ou onde quisessem. (...) Com os estudos genealógicos mais desenvolvidos nos nossos dias, sabemos que não havia uma regra de transmissão usada em todo o país.

 

Há notícia de uma família a viver perto de Braga no princípio do século XVII, que tinha por alcunha Os Grilos. O pai chamava-se António Luís, o filho Domingos Gonçalves, o neto Domingos Borges, e os bisnetos também eram Borges. Enquanto o apelido variava, a alcunha manteve-se fixa, todos eles eram conhecidos por o grilo ou a grila. E apesar de a família estar dividida em dois ramos que viviam em freguesias diferentes, todas as testemunhas disseram que os Grilos de uma freguesia eram parentes dos da outra.

 

Também se dá notícia de uma família que viveu nos séculos XVII e XVIII no concelho de Loures, usando os apelidos Lopes e Duarte, mas tendo em comum a alcunha de Os Carranças, pela qual todos eram conhecidos. As testemunhas da habilitação dizem que a qualquer criança que nasça nessa família começam logo a chamá-la O Carrança, mas esta alcunha nunca passou a apelido.

 

Não esqueçamos também que os apelidos tinham uma grafia bastante livre sobretudo quando podiam ser postos no feminino. Ninguém se admirava se uma mulher assinasse umas vezes Joana Brandão outras Joana Brandoa.

 

No século XVIII deram-se algumas inovações no uso dos apelidos. Entre a nobreza titular difundiu-se a moda estrangeira de usar nomes muito compridos, e esta extravagância permaneceu até ao princípio do nosso século, chegando a haver pessoas com mais de 30 nomes. Nas classes populares houve uma outra moda, a de as mulheres abandonarem os apelidos, usando apenas os nomes próprios ou de devoção. Por isso aparecem neste século nomes como Francisca Teresa de Santa Rosa, Ana Joaquina do Espírito Santo, Teresa Leocádia de São José.

 

 

VII. As mulheres começam a usar o apelido dos maridos

 

No princípio do século XIX expande-se em Portugal um costume que vigorava na maioria dos países europeus : o de a mulher adoptar o nome do marido. (...) Será exagero afirmar que não existe um único caso anterior ao século XIX, mas era realmente um uso estranho no nosso país.

 

Nas últimas décadas do século XVIII, as mulheres de comerciantes que tomavam conta do negócio do marido depois de viúvas, começavam a ver-se associadas ao apelido do defunto. (...) É possível que as conveniências comerciais tenham tido um papel na evolução dos apelidos.

 

 

VIII. O fim da Anarquia

 

Pela mesma época em que as mulheres se puseram a usar o nome do marido, estabeleceu-se também um modo de dispôr o nome que acabou com a desorganização do sistema de apelidos.

 

Os filhos passavam a usar o nome do apelido da mãe sempre em primeiro lugar, e o apelido do pai, sempre no fim do nome. O apelido paterno foi a partir daqui o mais importante, em todas as famílias. Esta disposição dos apelidos contrariava a tradição nacional, pois embora a anarquia reinasse neste campo durante séculos, o primeiro apelido era o que se considerava mais importante e se usava em assinatura abreviada.

 

A instituição do Registo Civil obrigatório, depois de proclamada a República, impôs a nova disposição dos apelidos a toda a população portuguesa. Só recentemente se deram alterações na lei permitindo restabelecer parte da liberdade que nos é característica.

 

 

 

 

Fontes

 

1 Encontrei este artigo na internet em 2009, transcrito e colocado por Maria Agrela (link apagado). É provavelmente um artigo de Carlos Lourenço Bobone publicado em 1986 no número 3 da revista Raízes Memórias (de acordo com o índice geral da revista). Leia o artigo completo.

 

Para aprofundar o assunto, ver também :

 

2 Notas e Dicionário das Famílias Portuguesas de D. Luis de Lancastre e Távora, transcrição colocada na internet por Soares e Silva

 

3 Medievalista online, revista especializada em Estudos Medievais : " Notas sobre a Identificação Social Feminina nos finais da Idade Média". Iria Gonçalves, Medievalista nº5, 2008

 

4 Os nomes de família em Portugal : uma breve perspectiva histórica, Nuno Gonçalo Monteiro, 2008